Desde 2016, o Rio Grande do Norte viveu pelo menos quatro ondas de ataques contra prédios públicos, com queima de ônibus do transporte público em diferentes cidades, provocadas por facções criminosas que atuam no estado.
Em comum, essas ondas de violência — registradas em 2016, 2017, 2018 e agora — estavam relacionadas de alguma maneira ao que se passava dentro dos presídios potiguares — tomados por integrantes de facções criminosas que rivalizam no estado.
Desde terça-feira (14), mais de 20 cidades, incluindo a capital, Natal, registram ataques a tiros e incêndios contra prédios públicos, comércios e veículos públicos e privados, que, segundo as autoridades locais, são realizados por uma facção que atua nos presídios.
O Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) apura as motivações dos ataques em um inquérito sigiloso. Até o momento, segundo o MPRN, a causa apontada é a insatisfação dos detentos com a ausência de “regalias”, inclusive visitas íntimas — que não estão previstas na Lei de Execuções Penais. As visitas íntimas estão suspensas desde o massacre de Alcaçuz, em 2017.
Mensagens que circularam nas redes sociais e são atribuídas ao Sindicato do Crime –a facção dominante no estado– mencionam uma suposta união com o Primeiro Comando da Capital (PCC) para atacar prédios públicos, em represália às condições nas unidades prisionais. Na quarta (15), familiares de detentos fecharam faixas da BR-101, em Natal, em protesto contra o tratamento dado aos presos, como falta de alimentação adequada e fim do banho de sol.
“Não é comum que as facções se unam em prol de mudanças no sistema. É inédito pensar nisso cinco anos depois do que aconteceu em Alcaçuz e da jura de morte que o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Sindicato do Crime teceram”, diz a antropóloga Juliana Melo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Em 2017, essas duas facções se enfrentaram em uma batalha campal dentro do Presídio Estadual de Alcaçuz que deixou 27 mortos. Segundo Melo, a partir de 2012 é formada a atual facção dominante, o Sindicato do Crime, que conviveu de forma mais ou menos pacífica com o PCC até 2016. Com o massacre de Alcaçuz, em janeiro do ano seguinte, houve o rompimento total entre as organizações criminosas.
1. Disputa de facções
Como explica a antropóloga Juliana Melo, na década de 2010, o PCC, já instalado no Rio Grande do Norte, tentou estabelecer uma relação de parceria com grupos criminosos locais, caso do Sindicato do Crime — formado a partir de 2012, o grupo cresceu com dissidências da facção paulista.
No livro “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, os pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias descrevem o processo de expansão nacional do PCC, iniciado nos anos 2000, quando a facção já controlava presídios de outros dois estados além de São Paulo, ambos de fronteira e importantes para a rota do tráfico: Paraná e Mato Grosso do Sul.
Ao longo dos anos, a nacionalização continuou para outras regiões do país, desencadeando disputas com facções locais, que, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, levaram a sucessivos conflitos em presídios entre 2017 e 2018 em estados como Roraima, Amazonas, Acre e Rio Grande do Norte — o caso de Alcaçuz.
Segundo Renato Souza Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio Grande do Norte em especial tem dois fatores de atração para facções criminosas: “Mercado e acesso aos portos da região para tráfico para a África e Europa”.
Em 2019, a Polícia Federal passou a apontar Natal como ponto de partida para o tráfico internacional de drogas, com envio de cocaína principalmente para Holanda e Bélgica. Nos últimos anos, aconteceram apreensões de grandes quantidades de cocaína no Porto da capital potiguar.
“Em 2016, há uma ruptura entre o PCC e o Sindicato do Crime”, diz Melo. “A partir daí o Sindicato se coloca como mais atuante, como dominante e faz os primeiros ataques pela tentativa do governo de colocar bloqueadores de celular na prisão estadual de Parnamirim, próxima de Natal”.
2. Histórico de ataques
Várias facções criminosas nasceram dentro das prisões brasileiras e a forte presença de seus integrantes em penitenciárias fizeram das unidades prisionais, como as potiguares, um foco de atenção do crime organizado — seja para impedir o controle efetivo das forças do Estado, seja para cobrar condições melhores para os presos, numa dinâmica também relacionada às disputas entre diferentes grupos criminosos.
No Rio Grande do Norte, explica a antropóloga Juliana Melo, a maioria dessas ondas de ataques se deu em reação a medidas tomadas nos presídios.
No final de julho de 2016, criminosos deram início a uma série de ataques com a queima de ônibus do transporte público de Natal e da região metropolitana. Depois, os ataques, que se estenderam até agosto, se espalharam pelo interior do estado, atingindo carros particulares, prédios públicos, agências bancárias e pontos turísticos.
A violência foi motivada, segundo o governo estadual, pela instalação de bloqueadores de sinal de celular em presídios — uma medida para aumentar a segurança e o controle estatal das unidades prisionais.
Depois, em 2017, uma nova onda de ataques foi desencadeada após o massacre no Presídio Estadual de Alcaçuz. O presídio chegou a ficar vários dias sem controle do Estado.
3. Ponto de virada
O massacre de Alcaçuz marca um ponto de virada no sistema prisional potiguar, com a retomada do controle da unidade por parte do estado, que investiu em melhorias arquitetônicas e de segurança e proibiu as visitas íntimas.
A Lei de Execução Penal estabelece que é um direito do preso receber “visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados”, mas não menciona a visita íntima. Em uma resolução, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) recomenda aos departamentos penitenciários que seja assegurado o direito à visita íntima aos presos de ambos os sexos.
“A partir de 2017, há melhorias arquitetônicas, o prédio é reformado, limpo. O nível de segurança também passa a ser outro, retiram as tomadas, então não há mais celular lá dentro”, explica Juliana Melo.
Entre 2019 e 2022, por exemplo, o governo concluiu a construção de um novo pavilhão e reformou o pavilhão de segurança máxima na penitenciária, conforme relatório da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP).
Também houve um aumento na quantidade de câmeras de monitoramento, que passaram de apenas três, em 2019, para 413, em 2020. Já em 2022, o governo instalou um sistema de videomonitoramento com mais de 1.400 câmeras, segundo o relatório da SEAP.
Segundo a presidente do Sindicato dos Policiais Penais do Rio Grande do Norte, Vilma Batista, não há como comparar o sistema prisional antes e depois de 2017, quando, segundo ela, presos dormiam em pé, visitas íntimas eram usadas para o tráfico de drogas e havia casos de estupro e outras violações dentro de Alcaçuz. Também se investiu em ações de educação e trabalho.
“Mas questões do tratamento dos presos, como casos de tortura, falta de acesso a medicamentos, alimentação inadequada, humilhação dos familiares, isso não mudou”, afirma a antropóloga Juliana Melo, que, depois da rebelião em Alcaçuz, acompanhou por anos familiares de presos na unidade.
“Eles relataram torturas dos mais variados tipos, como beber água sanitária, choque elétrico, ficar horas em posição de procedimento, ser obrigado a andar nu”, diz Melo.
Após o massacre, a Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) foi enviada ao Rio Grande do Norte. Tratava-se do braço penitenciário da Força Nacional de Segurança, composto por agentes penitenciários cedidos pelo governo federal e por governos estaduais para atuar em presídios com casos de rebelião.
Segundo Bárbara Coloniese, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNCPT), a FTIP tem “práticas de violência enraizadas”. O governo federal autorizou por 30 dias o uso da força-tarefa, rebatizada de Focopen (Força de Cooperação Penitenciária) na crise atual de segurança no Rio Grande do Norte. A Focopen atua na coordenação das ações dos serviços de guarda, de vigilância e de custódia de presos.
O Ministério da Justiça afirma que a atuação da Focopen é “pautada na doutrina de gerenciamento de crises, visando a estabilização da segurança, o apoio às assistências e o auxílio na humanização do cumprimento de pena”.
Em 2018, uma nova onda de ataques simultâneos foi registrada no Rio Grande do Norte e em Minas Gerais. Ônibus foram incendiados e prédios públicos, atacados com tiros. Em um dos ônibus atacado, a polícia encontrou um bilhete que atribuía à uma facção criminosa a ordem para os ataques como forma de reivindicação de melhores condições nos presídios de Itajubá (MG) e Alcaçuz.
4. Problemas persistentes
A antropóloga Juliana Melo explica que o quadro hoje nos presídios potiguares é de ausência de direitos já estabelecidos; alimentação precária, provocando quadros de desnutrição; além de forte opressão, com casos de tortura.
“Isso gera muita revolta no sistema e acaba transbordando para a rua, como estamos vendo agora, provocando uma espiral de violência”, diz ela. “Eles sabem que o que eles fazem aqui na rua também vai ter consequências lá dentro, aumentam as torturas”.
Inspeções em unidades prisionais do estado realizadas em novembro de 2022 por um órgão federal colegiado vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, o Mecanismo Nacional de Prevenção em Combate à Tortura (MNPCT), apontaram práticas de tortura, comida estragada e desassistência de saúde. A governadora Fátima Bezerra (PT) afirmou que as denúncias serão investigadas.
De acordo com a perita do MNCPT Bárbara Coloniese menos de 3% dos presos trabalham e praticamente não há ações para a ressocialização dos presos.
Além disso, explica ela, há um problema de superlotação, com algumas celas abrigando mais de 40 pessoas.
Segundo a Seap, o Rio Grande do Norte tem 7.804 presos. O número está acima do total de vagas (6.353) — um déficit de 1.451 vagas.
Para a antropóloga Juliana Melo, as condições dentro do sistema prisional se refletem na violência do lado de fora, provocando uma “espiral de violência”.
“Precisamos construir presídios que valorizem a dignidade humana para que essas pessoas saiam recuperadas para um convívio que, inevitavelmente, vai acontecer — já que no Brasil não temos pena de prisão perpétua. Em vez disso, nossas prisões acabam potencializando os criminosos e criando pessoas que saem de lá com ódio e vontade de se vingar”.
FONTE: G1